DEMOCRACIA ELETRÔNICA ?

Por RUDÁ RICCI*

O Prefeito Fernando Pimentel alardeou, nos últimos anos, que teria criado uma novidade em relação ao orçamento participativo (OP): a consulta eletrônica. As lideranças e estudiosos do tema se calaram para não criar constrangimentos. Afinal, a consulta eletrônica sobre obras e serviços não tem nada de novo. Recife já utilizou (e utiliza) este expediente há anos e nem por este motivo diz que se trata de um avanço em relação à metodologia do OP.

Mas ao menos, a confusão do prefeito mineiro teve o mérito de colocar em pauta os novos instrumentos de comunicação como passíveis de serem apropriados pelos mecanismos de democracia participativa.

Este tema parece relevante na medida em que sabemos que, pela primeira vez, mais da metade da população brasileira tem acesso a computador. Dados da Pesquisa sobre Uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC Domicílios 2007) revelam crescimento da banda larga nos domicílios, além do número de internautas e aquisição de computadores por domicílio. Mais de 50% dos domicílios com acesso à Internet possui banda larga, aumento de 10% em relação ao ano anterior. Um percentual de 42% deles, no entanto, ainda se conectam à rede principalmente por modem via acesso discado e a pesquisa permite verificar que quanto mais baixa a renda, maior o uso deste tipo de tecnologia. Em 2006 o acesso discado era predominante com uma presença em 49% dos domicílios, enquanto as conexões em banda larga representavam 40% do acesso domiciliar. O número de internautas também cresceu 6% em relação a 2006, chegando a 34% em 2007. Os dados mostram que, pela primeira vez desde que o levantamento vem sendo realizado, mais da metade da população consultada já teve acesso ao computador. Um percentual de 53% dos entrevistados informou já ter usado um computador, sendo que 40% dos respondentes são considerados usuários, dado que informaram ter se utilizado do equipamento nos últimos três meses. Também houve um crescimento de quatro pontos percentuais nas aquisições domiciliares de computadores, que em 2007 estavam presentes em 24% das residências brasileiras. O crescimento mais expressivo da aquisição de computadores ocorreu em domicílios com renda entre 3 e 5 salários mínimos, nos quais a penetração passou de 23% para 40% no período.

O aumento foi maior nas regiões Centro-Oeste (de 19% em 2006 para 26% em 2007), Sul (de 25% para 31%) e Sudeste (24% para 30%). A proporção de domicílios com computador é menor nas regiões Norte (13%) e Nordeste (11%) e o crescimento do indicador nestas regiões também foi menor, ficando em 3 e 2 pontos percentuais, respectivamente. A situação é preocupante, em especial, no nordeste, região com grande concentração populacional. E, justamente nesta região, as lan-houses ganham importância como mecanismo de acesso.

Quanto menor a renda da população, maior é a utilização das lan-houses. Dos usuários de Internet com renda até 1 salário mínimo, 78% declararam utilizar a rede através de centros públicos de acesso pago. Esse número cai para 67% para os que têm renda entre 1 e 2 salários mínimos; 55% para os que têm renda entre 2 e 3 salários mínimos; 42% para os com renda entre 3 e 5 salários mínimos; e é de apenas 30% para os usuários com renda superior a 5 salários mínimos. Os centros públicos de acesso pagos são utilizados especialmente pelas pessoas com menor nível de escolaridade: 64% são estudantes de nível fundamental, 53% são de nível médio e 54% daqueles que completaram até a educação infantil freqüentaram lan-houses em 2007. Entre os usuários com ensino superior esse percentual cai para 27%. O papel desempenhado pelos centros públicos de acesso pago, especialmente nas Regiões Norte e Nordeste do país, por outro lado, também reflete a ausência de infra-estrutura de banda larga nessas regiões, onde vive a população de menor poder aquisitivo.

NOVAS TECNOLOGIAS E GESTÃO PARTICIPATIVA

As novas tecnologias como suporte de relações políticas horizontailizadas e democráticas estão, quase sempre, associadas à organizações em rede. Há diversas experiências em curso[1].

Os princípios que norteiam esta nova concepção são:

1. O empoderamento social: trata-se de um conceito que objetiva o aumento do poder da sociedade civil sobre a elaboração, gerenciamento e monitoramento de políticas públicas. Boaventura Santos[2] afirma que este conceito remete para um novo tipo de Estado (para além da concepção moderna de separação entre Estado e sociedade civil) que ele denomina Estado-como-novíssimo-movimento-social. Em poucas palavras, é a “invasão” institucional da representação da sociedade civil em instâncias permanentes de gestão no interior do Estado. Este é o caso dos conselhos de gestão pública e orçamento participativo.

2. A criação de estrutura de governança social: trata-se de mecanismos e sistemas de administração de políticas sociais. Quase sempre articulado ao redor de Conselho Gestor Territorial e Conselhos Gestores de programas governamentais a partir de pólos microregionais. Os Conselhos Gestores, compostos por lideranças locais, autoridades públicas e instituições, além dos técnicos governamentais, definem os contornos dos projetos e programas a serem implementados e as metodologias de implantação a serem adotadas, além de avaliar periodicamente os resultados observados a partir das metas semestrais e anuais a serem estabelecidas.

3. A criação de sistemas públicos de monitoramento de políticas sociais: trata-se de sistema integrado, em rede, que monitora constantemente as políticas sociais desenvolvidas em dado território a partir de indicadores de avaliação elaborados a partir do conjunto de metas e objetivos definidos pelas comunidades beneficiadas (ou atingidas) pelas políticas públicas.

Para tanto, as ações denominadas de democracia eletrônica adotam focos muito nítidos. Um deles é a inclusão para a cidadania. Objetiva a garantia dos direitos à comunicação e interação dos indivíduos. Teoricamente, procura ampliar a capacidade política, autônoma, de grupos sociais acessarem informações, estabelecerem um fluxo de comunicação e avaliação social e política e interagirem, ampliando sua capacidade cidadão de produção e controle social.

Uma ação inicial, fundadora das ações de inclusão digital, é a criação de unidades de inclusão. Trata-se de instrumentalização de bibliotecas, laboratórios e até mesmo criação de redes de quiosques eletrônicos onde a população tem livre acesso à internet. Quase sempre, evoluem para a participação das comunidades na gestão das unidades de inclusão. São instrumentos e regras que garantem a co-gestão ou autogestão dessas unidades, a partir da constituição de coletivos ou conselhos de gestão das unidades de inclusão, que têm capacidade de deliberação sobre uso e serviços prestados nesses equipamentos.

Uma tentativa desta natureza ocorreu em Netville, Canadá, conjunto habitacional localizado na periferia de Toronto. As famílias, com renda média-baixa, concordaram em desenvolver uma experiência piloto, onde todas as casas estariam conectadas com conexão rápida à internet. Procurou-se integrar todos domicílios através de um sistema de intranet. Durante dois anos 65% das casas estiveram conectadas através de serviço gratuito de banda larga. Além da caixa postal e videofone, o sistema incluía acesso a serviços de saúde on-line e fórum local de discussão. Dois anos após o início da experiência, a empresa de telecomunicações envolvida no programa suspendeu sua participação. Pesquisas realizadas pela universidade local revelam o aumento significativo da sociabilidade, ajudando no conhecimento mútuo dos moradores (envolvendo troca de informações sobre hobbies comuns, ocupações, organização de eventos comunitários, entre outros).

Na França, os arquitetos Claire Petetin e Phillipe Grégoire desenvolveram, em 1999 (com apoio do Ministério da Cultura e Secretaria da Cultura), a instalação de um telecentro na Maison du Quartier, projetado para abrigar atividades comunitárias (denominada Infokiosk). Com a instalação de dezenas de computadores e apoio de técnicos da Universidade de Estrasburgo, objetivou-se criar um ambiente virtual onde o usuário poderia criar uma identidade específica (inclusão de textos, grafites, fotos, times).

No Brasil, vale destacar a experiência promovida pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), Universidade Federal do Ceará, Incra e Banco do Nordeste. Trata-se da criação do Centro Rural de Inclusão Digital (CRID), um ambiente virtual de aprendizagem de agricultores familiares. Em Sonópole, município do interior do Ceará onde residem 17 mil pessoas, o principal problema local é a falta de água (o município está situado na Zona da Seca). A rede de comunicação começou a ser implantada em 2001, tendo como instrumento um sistema de transmissão por ondas de rádio. Foram instaladas antenas parabólicas em comunidades rurais, uma torre operadora de telefonia e um provedor wireless. Integraram-se, a partir daí, hospital, centros de saúde, escolas e administração pública. Logo depois, foi criado o primeiro telecentro (Ilha Digital), com cinco computadores, empregando a plataforma Linux. O impacto sobre o comércio local foi muito sentido, aumentando o leque de ofertas. A administração pública local iniciou um processo de prestação de contas on-line, além de providenciar emissão de documentos públicos e certidões.

As experiências são múltiplas e envolvem todo o Planeta. Envolvem articulações entre cidadãos de um governo local (como em Castelo Branco, Portugal, onde estão utilizando um “passaporte” de acesso), ou um projeto europeu liderado pela Polícia de Valência que cria ambiente virtual de formação de polícias locais, ou ainda a experiência da Estônia, onde vagas para pré-escola são acessadas por sistemas interativos de comunicação com cidadãos.

Este tema vem ganhando novo fôlego a partir das campanhas eleitorais de Barack Obama e, no caso tupiniquim, de Fernando Gabeira. As campanhas dos dois geraram mecanismos interativos e virtuais de mobilização e participação que acabaram fugindo do controle das suas campanhas. No Rio de Janeiro, a campanha gerou a formação de uma Rede Social de Relacionamentos. A rede utilizou a ferramenta "social network" Ning.com, criada em 2004 por Marc Andreessen (autor também do navegador Netscape) e Gina Bianchini.

Como afirma Egeu Laus, o que configura uma Rede é a possibilidade de todos os pontos (ou nós ou nodos) poderem se comunicar com todos os outros pontos em todas as direções, livremente, ponto a ponto, naquilo que se conhece conceitualmente como Rede Distribuída (conforme desenhada por Paul Baran para a estrutura de um projeto que se tornaria mais tarde a Internet).Ainda segundo Laus, como participante é possível conversar com todo mundo livremente, escrever textos para o blog, criar fóruns de discussão, colocar fotos e vídeos, receber e enviar mensagens, convidar e ser convidado, formar grupos de amigos.
É a partir desses parâmetros que devemos analisar tais experiências. Como experiências políticas de promoção da solidariedade e igualdade social.
[1] Tomás Villasante, da Universidade Complutense de Madri e diretor de mestrado sobre participação, sustentabilidade e desenvolvimento local é um dos autores mais produtivos na análise dessas experiências. Ver http://www.ecocomunidad.org.uy/ecocom/villasante_paradojas.html .
[2] SANTOS, Boaventura. “Para uma Reinvenção solidária e participativa do Estado”, In Sociedade e Estado em Transformação. Brasília/São Paulo: ENAP/Editora Unesp, 1999.

* Sociólogo, 46, Doutor em Ciências Sociais, membro do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa.